Anteprojeto de Lei de Atualização do Código Civil: Fundos de Investimento – Preocupações Iniciais

Em setembro de 2019, foi editada a Lei nº 13.874, intitulada Lei da Liberdade Econômica (“Lei 13.874” ou “LLE”), promovendo alterações importantes ao Código Civil Brasileiro. Dentre tais alterações, tivemos a criação do capítulo destinado aos fundos de investimento (Capítulo X – artigos 1.368-C a 1.368-F, o “Capítulo de Fundos de Investimento”), sendo este um verdadeiro divisor de águas na legislação aplicável a essa indústria, que até então carecia de regramento legal próprio.

Referida lei foi responsável pela implementação de uma série de inovações (há tempos aguardadas em sua grande maioria), tais como a limitação da responsabilidade dos cotistas ao valor de suas cotas, a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços, a possibilidade de criação de classes com patrimônio segregado dentro de um mesmo fundo e a possibilidade de criação de subclasses de cotas.

Tendo como base principalmente tais importantes inovações, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, por sua vez, e após amplo e detalhado debate junto ao mercado por quase dois anos, editou a Resolução nº 175, em 23 de dezembro de 2024 (“Resolução CVM 175”), promovendo um novo marco regulatório (e o mais relevante) aplicável aos fundos de investimento. Após a postergação de sua entrada em vigor e do prazo de adaptação dos fundos existentes, notadamente em decorrência da relevância do impacto das alterações, a indústria segue em processo de adaptação e possui até 29 de novembro de 2024 para a adaptação dos fundos de investimento em direitos creditórios e até 30 de junho de 2025 para a adaptação dos demais fundos. Esse é o cenário atual.

Após pouco menos de quatro anos da criação da Lei da Liberdade Econômica e no meio de um processo complexo e amplo de adaptação de aproximadamente 30 mil fundos de investimento existentes, propõe-se alterar o Capítulo dos Fundos de Investimento. A proposta faz parte do anteprojeto de lei de atualização do Código Civil Brasileiro, apresentado pela Comissão de Juristas no início da última semana ao Senado Federal (“Anteprojeto”).

Vale destacar, inicialmente, nosso entendimento de que o Anteprojeto contempla inúmeras alterações importantes e necessárias de atualização do regramento da sociedade, para o seu contínuo aperfeiçoamento, considerando o avanço das relações legais e contratuais. Neste sentido, divulgamos nos últimos dias nossos comentários a uma das alterações: as mudanças que impactam a sucessão do cônjuge, conforme pode ser lido aqui.

Por outro lado, em relação às regras constantes do Capítulo de Fundos de Investimento, embora seja compreensível o argumento de “oportunidade” em decorrência das demais mudanças do Código, não nos parece possível negar a prematuridade quanto à proposta de alteração de tema tão recentemente debatido e inserido em nosso ordenamento jurídico, e que sequer foi ainda plenamente absorvido e testado na prática, notadamente perante o judiciário e tribunais arbitrais. Aprimoramentos devem sempre ser avaliados e são bem-vindos, mas estes deveriam ser assim configurados após amadurecimento e ampla interpretação da sua necessidade, de forma empírica, sob pena de potencialmente causar o efeito contrário daquele que se pretendia, contribuindo para a geração de insegurança jurídica.

Cabe mencionar, por fim, que a exposição de motivos a respeito das alterações propostas aos dispositivos aplicáveis aos fundos não contemplou, em nossa visão, detalhamento mínimo que pudesse fornecer o racional pretendido da mudança, o que, se tivesse ocorrido, sem dúvidas facilitaria a sua interpretação – tanto pelos membros do Congresso, que serão os responsáveis finais por sua avaliação e aprovação, quanto pelos atuantes na indústria.

Feitas as ponderações iniciais, a seguir faremos breves comentários às principais alterações propostas no Capítulo X. Destacamos em marcas as alterações propostas no Anteprojeto para facilitar a avaliação.

1) Exclusão da referência expressa a “condomínio”

Art. 1.368-C.  O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza.

A exclusão da referência a “condomínio”, em nossa opinião, não deveria representar alteração prática quanto à tipificação da natureza jurídica dos fundos de investimento no Brasil, sendo estes representados por uma “comunhão de recursos de natureza especial”, o qual não deverá ser confundido com o “condomínio geral” previsto no artigo 1.314 e seguintes Código Civil, cujo afastamento expresso foi mantido (§1º deste mesmo artigo 1.368-C).

Sem prejuízo das eventuais críticas ao modelo utilizado no Brasil (condominial) em comparação a outros utilizados em jurisdições estrangeiras (entidades com personalidade jurídica), referido tema já foi objeto de amplo debate pela doutrina nas últimas décadas, com interpretação pacificada (e refletida no Código Civil a partir da LLE) sobre serem de natureza condominial (especial). Por outro lado, e aqui se encontra o nosso ponto de atenção ao tema, não se pode negar que a exclusão textual sem o devido esclarecimento tem potencial de reabrir a discussão, o que não nos parece oportuno ou produtivo neste momento.

2) Suficiência do registro perante a CVM de atas de assembleias de cotistas para garantir publicidade e oponibilidade

Art. 1.368-C.  (…) § 3º O registro dos regulamentos dos fundos de investimentos, bem como das atas das assembleias de cotistas, na Comissão de Valores Mobiliários, é condição suficiente para garantir a sua publicidade e a oponibilidade de efeitos em relação a terceiros.

A inclusão do texto em destaque é muito bem-vinda e representa segurança jurídica ampla ao fato de que o registro perante a CVM das atas das assembleias de cotistas é suficiente para garantir sua publicidade e oponibilidade, evitando-se, com isso, o registro adicional em cartório, o qual representa custo relevante em determinadas situações.

Vale destacar que a LLE já havia contemplado de forma expressa no dispositivo legal a referência ao regulamento dos fundos. No entanto, em decorrência de a redação se limitar a estes, ainda há um receio por parte da indústria quanto à necessidade de registro em cartório dos documentos deliberativos para a sua oponibilidade perante terceiros (e.g., atas de aprovação de contas, de emissão de novas cotas e de prestação de garantias).

Em decorrência de tal receio, a indústria, por vezes, se utilizou de soluções pouco eficientes (ainda que eficazes) para evitar o registro adicional em cartório e o custo daí decorrente, a exemplo do registro de atas em conjunto com o regulamento dos fundos, ainda que este último documento não fosse alvo de qualquer alteração naquele determinado momento.

Por fim, em que pese a percepção positiva da alteração, a redação sugerida se limitou a tratar das assembleias de cotistas, deixando de lado os atos deliberativos dos prestadores de serviços essenciais, tais como os relativos à emissão de novas cotas com base em patrimônio autorizado da classe.

Com isso, fato é que a extensão da redação de forma a contemplar todas as possibilidades se faz necessária para garantir o que entendemos ser o objetivo integral deste dispositivo: permitir que o registro exclusivamente perante a CVM dos atos deliberativos e documentos constitutivos dos fundos de investimento seja suficiente para sua publicidade e oponibilidade perante terceiros.

3) Inclusão de casos de desconsideração da limitação da responsabilidade

Art. 1.368-D.  § 4º As regras de limitação e de exclusão de responsabilidades previstas neste dispositivo poderão ser desconsideradas em casos de fraude, dolo, má-fé e atos ilícitos, nos termos da lei.

O parágrafo acima transcrito foi inserido ao art. 1.368-D, o qual trata da possibilidade de o regulamento dos fundos limitar a responsabilidade dos cotistas ao valor de suas cotas e limitar a responsabilidade dos prestadores de serviços.

Vale destacar, com isso, que a redação inserida busca contemplar casos em que poderá haver a desconsideração da limitação da responsabilidade, tanto dos cotistas quanto dos prestadores de serviços, em decorrência de “fraude, dolo, má-fé e atos ilícitos, nos termos da lei”. Em nossa visão, a inserção da redação adicional, além de não se fazer necessária, poderá ser interpretada de forma equivocada com sensíveis consequências.

Em relação à necessidade e oportunidade de sua previsão, vale mencionar a existência de um conjunto de dispositivos já contemplados no Código Civil plenamente capazes de endereçar a preocupação dos juristas, em nossa melhor leitura, notadamente aqueles relativos à responsabilidade subjetiva aplicável aos prestadores de serviços, assim como aos impactos decorrentes do potencial abuso das estruturas e do desvio de sua finalidade por investidores.

Por sua vez, ao acrescentar de forma ampla a responsabilização dos prestadores de serviços “quando praticarem algum ato ilícito”, o dispositivo pode aproximar, de forma equivocada, a aplicação da responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor – CDC ou em outras leis específicas, de forma a se contrapor com a obrigação de meio dos prestadores de serviços, prevista no §2º do artigo 1.368-D, e o conceito de ato ilícito derivado especificamente da culpa nos termos dos artigos 186 e 187 do Código Civil (reponsabilidade subjetiva).

Neste sentido, além do necessário esclarecimento daquilo que efetivamente se pretende pela inserção do §4º acima, entendemos que a sua manutenção invariavelmente deverá contemplar a limitação do termo para “culpa” e não uma referência à regra geral de ilicitude, que pode conceder indeterminação quanto à interpretação do que seria a ilicitude.

Cabe neste ponto reforçar a preocupação com a segurança jurídica do ambiente de negócios, tanto para investidores (nacionais e estrangeiros) quanto para prestadores de serviços, como premissa base para a contínua expansão da indústria de fundos brasileira. A dúvida ou incerteza sobre os limites de sua responsabilidade poderá afastar investidores e afugentar prestadores de serviços (o que impacta também a concorrência entre estes).

4) Extensão da responsabilização dos prestadores de serviços em relação às obrigações legais e contratuais dos fundos de investimento

Art. 1.368-E. Os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, e os prestadores de serviço não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com fraude, dolo ou má-fé; ou quando praticarem algum ato ilícito.

O artigo 1.368-E, caput, do Código Civil atual, prevê a responsabilização direta dos fundos de investimentos pelas obrigações legais e contratuais assumidas, podendo estas serem atribuídas aos prestadores de serviços do fundo, quando estes procederem “com fraude, dolo ou má-fé”.

A Comissão de Juristas do Senado propôs acrescentar a responsabilização dos prestadores de serviços “quando praticarem algum ato ilícito”. Igualmente em relação ao §4º do artigo 1.368-D mencionado anteriormente, entendemos que esse acréscimo pode ser interpretado de forma equivocada, podendo aproximar a responsabilidade objetiva prevista no CDC ou em outras leis específicas.

Daí a necessidade de que, em havendo o entendimento pela efetiva alteração da redação atual, igualmente para este dispositivo haja a limitação do termo para “culpa” e não uma referência à regra geral de ilicitude.

5) Aplicação da Lei de Falência aos fundos de investimento

Art. 1.380-E (…) § 1º Se o fundo de investimento com limitação de responsabilidade não possuir patrimônio suficiente para responder por suas dívidas, aplicam-se as regras de insolvência previstas nos arts. 955 a 965 deste Código. § 1º Os fundos de investimento, sujeitam-se às regras previstas na Lei nº 11.105, de 9 de fevereiro de 2005, no que couber e sem prejuízo do disposto nos parágrafos seguintes. (…)

§ 3º Caso o regulamento do fundo estabeleça classes de cotas com direitos e obrigações distintos, nos termos do inciso III do caput do art. 1.368-D deste Código, aplica-se o disposto neste artigo a cada classe de cotas, individualmente considerada.

A sugestão legislativa proposta pela Comissão no tocante à limitação de responsabilidade dos fundos de investimentos é prever que estes passem a se sujeitar à Lei de Falências (Lei nº 11.101/2005), ao invés de se sujeitarem ao regime da insolvência civil, vigente na redação atual.

O fundamento é de que a Lei de Falência seria mais completa para tratar do tema, diante de algumas lacunas das regras de insolvência.

Ao nosso ver, contudo, nenhum dos regramentos (insolvência ou falência) se aplica adequadamente à natureza jurídica do fundo de investimento, sendo ambos aptos a gerar insegurança jurídica; o ideal seria propor um regime jurídico de insolvência específico.

De certo, poderá haver insegurança jurídica a respeito da capacidade dos fundos para requerer recuperação judicial ou extrajudicial. Ainda, poderá gerar dúvidas sobre a possibilidade de responsabilização dos prestadores de serviços por crime falimentar, conforme artigo 168, da Lei nº 11.101/05, ou se estes se sujeitariam às obrigações do artigo 104, da mesma lei, que traz uma série de obrigações ao falido, bem como se o prestador de serviços de um fundo falido ficaria inabilitado a prestar serviços para outros fundos.

Há de ser considerado que não há informação a respeito da classe em que os créditos desses prestadores de serviços seriam classificados na falência ou recuperação do fundo, ensejando insegurança na sua interpretação.

Na mesma proposta, se eliminou o texto vigente do artigo 1.368-E, §1º, que fazia remissão expressa à distinção entre fundos com responsabilidade limitada e ilimitada (constante do artigo 1.368 – D, I, do Código Civil). Assim, numa interpretação literal da redação sugerida, os fundos com responsabilidade ilimitada também se sujeitariam à falência, ensejando dúvida se os próprios cotistas poderiam vir a responder patrimonialmente no âmbito falimentar.

Em nosso melhor entendimento, a alteração para o regime da lei falimentar, no presente momento, parece trazer mais dúvidas do que soluções, especialmente considerando todos os dispositivos já regulamentados pela CVM para a insolvência civil no âmbito da Resolução CVM 175, a qual não foi amplamente testada; portanto, nossa recomendação de alteração da legislação seria no sentido de utilizar as normas falimentares tão somente de forma subsidiária às regras de insolvência.

Outro ponto relevante na aplicação da Lei de Falência foi pela opção de exclusão do §3º do mesmo artigo 1.368-D (removendo a menção às classes de cotas), o que implicaria na possibilidade de interpretação que apenas o fundo está sujeito à falência e recuperação, e não as classes de cotas, a despeito da lei vigente e da regulamentação da CVM. Ou seja, a falência de uma classe implicaria na falência do fundo, o que obviamente não faz qualquer sentido tendo em vista a necessária segregação de patrimônio entre estas.

Diante da inovação do tema, é importante que a legislação seja clara na sua interpretação e alcance, de forma a preservar a efetiva separação patrimonial entre as classes de cotas, evitando insegurança aos cotistas e prestadores de serviços que optarem por estabelecer múltiplas classes no âmbito de um mesmo fundo, sob pena de impedir o desenvolvimento do uso das classes de cotas, o qual, destaca-se, é amplamente utilizado nas jurisdições mais avançadas.

6) Medidas de indenização em face dos prestadores de serviços dos fundos de investimentos

Art. 1.380-E (…) § 3º Compete aos fundos de investimentos, mediante prévia deliberação da assembleia-geral de cotistas, a ação reparação de danos contra os prestadores de serviço, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.

§ 4º Qualquer cotista poderá promover essa ação de reparação de danos, em nome próprio, se não for proposta no prazo de 3 (três) meses da deliberação da assembleia geral.

§ 5º Se a assembleia geral dos cotistas decidir não promover a ação de reparação de danos, poderá ela ser proposta por cotistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do patrimônio do fundo.

A inclusão dos parágrafos 3º, 4º a 5º, todos do mesmo artigo 1.368-E, para disciplinar a ação de responsabilidade do Fundo contra os prestadores de serviços se vale dos mesmos conceitos do artigo 159, da Lei das S. A. (Lei nº 6.404/76).

A proposta de alteração prevê que a ação de indenização: (i) depende de deliberação prévia em assembleia de cotistas (§3º); (ii) implica legitimação extraordinária para qualquer cotista propor ação em nome do Fundo, caso a ação seja aprovada, mas não seja proposta em 3 (três) meses a contar da deliberação; e (iii) possibilita que cotistas representando 5% do Fundo, também em legitimação extraordinária, promovam a demanda diretamente, caso a assembleia não delibere pela interposição da ação de reparação.

A alteração nos parece positiva, porém, seria recomendável a inclusão de todos os dispositivos do artigo 159 da Lei das S.A., incluindo: (i) previsão expressa de que os resultados da ação de responsabilidade aproveitam à classe do fundo, resguardada a indenização do cotista em relação aos resultados perdidos (artigo 159, §5º, da Lei); (ii) possibilidade de excluir a responsabilidade do prestador de serviço, caso se verifique que esse agiu de boa-fé, visando o interesse da classe do fundo (artigo 159, §6º, da Lei); e (iii) resguardo ao direito de cotista ou terceiro prejudicado diretamente pelos atos do prestador de serviços do fundo (artigo 159, §7º, da Lei).

7) Legitimidade legislativa da CVM

Art. 1.380-E (…) § 7º A Comissão de Valores Mobiliários poderá disciplinar outros temas relativos à responsabilidade dos fundos de investimento.

Entendemos pertinente que a CVM possa regulamentar as regras de responsabilidade previstas em lei, como já é de seu campo de atuação, mas não seria recomendável que a CVM criasse regras materiais ou processuais de responsabilidade para complementar as lacunas da lei, inovando no sistema legislativo, sob pena de que essa legitimação pudesse causar insegurança aos investidores e prestadores de serviços.

Assim, a sugestão seria a inserção de regras que sejam convenientes e porventura não tenham sido tratadas, admitindo que a CVM apenas regulamente a norma existente com a amplitude que a legislação permite aos entes administrativos.

Seguiremos acompanhando a tramitação do Anteprojeto no Congresso e traremos comentários adicionais quando oportuno.

 

Este informativo foi elaborado exclusivamente para nossos clientes e apresenta informações resumidas e não exaustivas sobre o tema, não representando uma opinião legal. Dúvidas e esclarecimentos específicos sobre tais informações deverão ser dirigidos diretamente ao nosso escritório.

 

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