Como é de conhecimento público, em havendo relação de consumo, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor (“CDC”), cuja norma traz inúmeras vantagens para o consumidor, por se tratar de parte mais vulnerável/hipossuficiente, como por exemplo: (i) a interpretação favorável ao consumidor de cláusulas contratuais; (ii) a possibilidade de anular os efeitos de cláusulas que sejam entendidas como abusivas ou que limitem a responsabilidade do fornecedor; (iii) a inversão do ônus da prova; (iv) a possibilidade de que a ação tramite no domicilio do consumidor; (v) responsabilização objetiva do fornecedor (independentemente de culpa); e (vi) a possibilidade de responsabilização solidária de todos os integrantes da cadeia de fornecimento.
De antemão, destaca-se que desde 2004 o STJ editou a Súmula nº 297, com o seguinte teor: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”, bem como há posicionamento do STF em 2006, na ADI 2591 no mesmo sentido.
Podemos afirmar que os entendimentos mencionados possuem caráter mais abrangente ou genérico, que de nenhuma forma as desmerece ou desqualifica, mas apenas entendemos que não podem ser aplicáveis a todas as situações que envolvam instituições financeiras, como por exemplo quando estivermos diante de investidores em fundos de investimentos, especialmente pela recente alteração no Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica.
Deve se notar que o Poder Judiciário, com fundamento no entendimento jurisprudencial consolidado, tem reconhecido a aplicação do CDC nos contratos celebrados entre instituições financeiras e investidores em fundos de investimento, reconhecendo a responsabilidade das instituições financeiras por investimento malsucedido, com fundamentação que nos parece não mais condizente se apreciada conforme a nova legislação vigente (Ex.: Resp. 1326592/GO, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª T., DJe 06/08/2019).
O entendimento jurisprudencial deve ser atualizado, conforme a legislação vigente e as circunstâncias complexas da relação jurídica entre os prestadores de serviços para os fundos de investimentos e os respectivos investidores.
Em primeiro lugar, quando tratamos da prestação de serviços para os fundos de investimento, devemos decompor a relação jurídica para a qualificarmos adequadamente: (i) entender para quem se presta o serviço; (ii) se a atividade tem obrigação de fim ou obrigação de meio; e (iii) se há a figura do consumidor nessa relação.
Quanto ao primeiro item, podemos afirmar que as instituições financeiras prestam serviços aos fundos de investimento e não diretamente ao cotistas, da mesma forma que um síndico não presta serviços aos condôminos, apesar de possuir deveres perante estes. Os cotistas são investidores do fundo, que é constituído na forma de condomínio especial (art. 1368-C do Código Civil, incluído pela Lei 13.874/2019) e não se pode admitir que haja relação de consumo direta entre o fundo e o prestador, fato que deve ser considerado pelo Poder Judiciário nessa relação jurídica de caráter especial.
Ainda, a obrigação dos prestadores de serviços perante os fundos de investimento é de meio e não de resultado, (art. 1368-D, §2º do Cód. Civil), não sendo admitida a responsabilidade objetiva, uma vez que o Código Civil determina que os prestadores de serviços só devem responder quando atuarem com dolo ou má-fé (art. 1368-E).
Por fim, em relação aos consumidores, não podemos afirmar que investidores em fundos de investimento sejam consumidores na acepção estrita do termo “Consumidor”, uma vez que consumidor é aquele que “utiliza do produto ou serviço como destinatário final”, o que não é o caso dos investidores.
Muito menos os investidores pessoas jurídicas, ou os investidores que sejam classificados como “qualificados” ou “profissionais”, segundo as regas da Comissão de Valores Mobiliários, podem ser classificados como consumidores, uma vez que possuem experiência e estão cientes dos riscos dos investimentos que realizam.
A alteração do Código Civil em 2019 trouxe luz à relação jurídica dos serviços prestados aos fundos de investimento, sendo que a doutrina e jurisprudência não devem estar alheias a esta nova realidade.
Em recente julgado o Tribunal de Justiça de São Paulo afastou a aplicabilidade do CDC, ao analisar o caso e verificar que o autor da ação não se enquadrava no conceito de consumidor, pois contratou prestador de serviços para auferir lucros e incrementar as suas atividades empresariais, correndo riscos dos investimentos que autorizou (TJSP, Ap. nº 1014153-90.2015.8.26.0100, 35ª Câm. de Dir. Priv., D.J. 09/11/2020).
Da mesma forma, não entendemos mais ser adequado aplicar a responsabilidade objetiva aos prestadores de serviços, uma vez que violaria o texto expresso do Código Civil, como já visto, bem como não se pode aplicar a responsabilidade solidária, diante da limitação prevista no inciso II, do artigo 1.368-D do Código Civil, respeitando os termos do regulamento do fundo e as normas da CVM.
Com fundamento no Código Civil e em novas normas a serem editadas pela CVM, os prestadores de serviços terão muito mais segurança jurídica em prestar os serviços aos fundos de investimento, sem prejuízo de serem responsabilizados caso pratiquem atos ilícitos que gerem prejuízo aos investidores.
Diante disso, não negamos a importância do entendimento amplo do STJ em relação a aplicação da legislação consumerista no serviço prestado por instituições financeiras de maneira geral, mas entendemos que deve ser feita uma análise atual e apropriada, levando em consideração a complexidade da relação jurídica existente entre o prestador de serviços e o investidor em fundos de investimento, sem cair numa vala comum das decisões mais genéricas.
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