A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) publicou na segunda-feira, 30/09/2024, a Resolução CVM nº 214 (“RCVM 214”), por meio da qual estabeleceu a regulamentação específica aos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (FIAGRO), integrando o Anexo Normativo VI à Resolução CVM nº 175, de 23 de dezembro de 2022, conforme alterada (“RCVM 175”). A RCVM 214 é fruto do Edital de Consulta Pública SDM nº 03/23 (“EAP”), o qual contou com nossas contribuições.
O FIAGRO foi instituído pela Lei nº 14.130/21, por meio de alteração à Lei 8.668/93 (“Lei 8.668”), que regula os fundos de investimento imobiliário (“FII”). No âmbito da regulamentação infralegal, o FIAGRO é atualmente regido pela Resolução CVM nº 39, de 13 de julho de 2021 (“RCVM 39”), norma provisória e de caráter experimental, que viabilizou a constituição destes fundos utilizando-se as plataformas regulatórias existente para os FII, fundos de investimentos em direitos creditórios (“FIDC”), e para os fundos de investimento em participações (“FIP”).
Embora a Resolução CVM nº 39 tenha sido bem recebida pela indústria, tendo propiciado um rápido desenvolvimento do mercado e demonstrado um nível satisfatório de segurança jurídica, a norma vigente limita o FIAGRO a emular a carteira de outras classes de fundos já existentes – restringindo a sua composição a determinadas categorias de ativos e não permitindo ao mercado usufruir de forma plena das amplas possibilidades previstas em lei para o produto.
Assim como o legislador, que optou por utilizar a Lei 8.668 como base para construção da norma de FIAGRO, a CVM seguiu na mesma direção. Não obstante, e em que pese os desafios para evitar arbitragem regulatória, entendemos que o resultado foi a criação de uma norma efetivamente autônoma para o FIAGRO.
A contribuição do nosso escritório no âmbito do EAP pode ser encontrada em: Consulta Pública SDM 03/2023 (cvm.gov.br)
Nomenclatura
Diferentemente da RCVM 39, a CVM optou por não adotar distinção de nomenclatura para os FIAGRO em função de sua política de investimento, mas deixou clara a possibilidade de inclusão da estratégia ou tipo de ativo na denominação do FIAGRO.
Carteira
Com relação aos ativos elegíveis, a RCVM 214 implementou melhorias, em relação à Lei 8.668 e ao EAP, incorporando expressamente direitos reais sobre imóveis rurais, bem como créditos de carbono do agronegócio e créditos de descarbonização-CBIO. A nova regra também esclareceu que será permitida a possibilidade de aquisição de quaisquer direitos creditórios, ainda que não securitizados, bem como créditos não performados.
Especificamente com relação aos imóveis rurais, sua definição foi estendida em relação ao proposto no EAP, de forma que, além de imóveis que possuam Certificado de Cadastro de Imóvel Rural – CCIR e depósito de água não marinha, será admitido o investimento em imóvel “localizado em perímetro urbano, que seja destinado à exploração de atividades da cadeia produtiva do agronegócio e possua registro no Registro Geral de Imóveis – RGI”.
Adicionalmente, a CVM acatou a proposta enviada pelo nosso escritório de utilizar como gatilho da preponderância, para fins da aplicação de regras específicas de outros Anexos Normativos da RCVM 175, o limite mínimo de 50% do patrimônio líquido, em vez de 1/3, conforme originalmente proposto no EAP. Com isso, a aplicação subsidiária de regras de outras categorias de fundos fica limitada a um único anexo normativo (“Regime de Preponderância”).
Esta mecânica infere que, na prática, as regras específicas de outros fundos não são aplicáveis ao FIAGRO “multiestratégia”, que detenham menos de 50% do seu patrimônio líquido em uma determinada categoria de ativos. Ainda, foram incorporados expressamente no Anexo Normativo VI dispositivos de outros Anexos, visando a dar autonomia aos FIAGRO “multiestratégia”, tornando-as assim regras específicas dessa categoria.
Outra proposta de nosso escritório incorporada à nova RCVM 214 foi a possibilidade de aplicar recursos em cotas de fundos de investimento em renda fixa e títulos de renda fixa, para fins de caixa e liquidez, tal como é feito pelos FII.
Sobre a possibilidade de um mesmo ativo poder estar contido na carteira de fundos de diferentes categorias, conforme alertamos à CVM no âmbito do EAP e mencionado pela Revista Capital Aberto em sua recente matéria sobre o assunto[1], a CVM determinou que caso um ativo possa fazer parte da carteira de mais de uma categoria de fundo, o regulamento deve indicar expressamente a categoria a que o ativo pertence, considerando a política de investimento da classe de cotas do FIAGRO. Com isso, ativos com a mesma natureza não podem ser indicados em categorias distintas no âmbito da mesma classe de cotas.
Foram incorporadas, ainda, algumas liberalidades permitidas às classes restritas, tais como:
(i) Flexibilização de prazos de conversão e resgate;
(ii) Ordem de preferência no pagamento de rendimentos e amortizações;
(iii) não observância da carteira aos limites de concentração por devedor, emissor e tipo de direito creditório; e
(iv) encargos despesas com consultoria especializada ou qualquer outro serviço.
Importante ressaltar, por fim, que a RCVM 214 é omissa com relação às regras de enquadramento, desenquadramento e plano de ação para reenquadramento aplicáveis aos FIAGRO segundo o Regime da Preponderância. Nesse sentido, entendemos que aplicar-se-ão as regras específicas de cada Anexo Normativo subjacente ou, em se tratando de FIAGRO “multiestratégia”, apenas o previsto na Parte Geral.
Por fim, diferentemente do previsto na Resolução CVM 39, que impossibilitava a constituição de FIAGRO com base na Resolução CVM nº 444, de 08 de dezembro de 2006, os FIAGRO constituídos no âmbito do Anexo Normativo VI poderão investir em direitos creditórios não-padronizados. Por sua vez e de forma a não gerar assimetria, tais fundos estão restritos ao recebimento de investimento apenas de investidores profissionais.
Regime de Condomínio
A RCVM 214 dirimiu as dúvidas do mercado a respeito da possibilidade de constituição de FIAGRO de condomínio aberto, conforme o Regime da Preponderância. Ou seja, FIAGRO cujo Regime da Preponderância se assemelhe a Fundo de Investimento Financeiro (“FIF”) e FIDC poderão ser constituídos como condomínio aberto.
Por outro lado, FIAGRO que observem o Regime da Preponderância de FIP, FII e outros fundos de condomínio necessariamente fechado, somente poderão ser constituídos como tal.
Essa dinâmica deixa a cargo dos prestadores de serviços essenciais a responsabilidade pela correta estruturação do produto a depender dos ativos e sua liquidez, o que será principalmente relevante em relação ao FIAGRO “multiestratégia”.
Papel do Gestor de Recursos nos FIAGRO
A RCVM 214 manteve a figura do gestor de recursos como prestador de serviços essencial para o FIAGRO, com exceção dos casos em que a política de investimentos da classe não permita a aplicação de parcela superior a 5% (cinco por cento) do patrimônio líquido em outros ativos que não direitos reais sobre bens imóveis. Ou seja, aplicando lógica semelhante aos FII. Não obstante, trouxe as atribuições do gestor de forma mais clara e mais abrangente em comparação ao FII, inclusive com relação à contratação de outros prestadores de serviços.
A CVM reconheceu, ainda, que o debate em torno da necessidade de se modernizar a interpretação da Lei nº 8.668 no tocante à participação dos gestores de recursos está amadurecendo.
Créditos de Carbono do Agronegócio, CBIOs e Ativos Verdes
Para evitar confusão com relação à definição de crédito de carbono prevista no Anexo Normativo I, a CVM propôs a denominação de “crédito de carbono do agronegócio” àqueles elegíveis à carteira do FIAGRO – as diferenças principais desses são (i) possibilidade de aquisição de créditos originados e negociados no Brasil apenas (em contraste com os créditos de carbono permitidos à carteira do FIF, que podem ser originados negociados no exterior), (ii) possibilidade de aquisição de crédito de carbono que sejam ativos não necessariamente equiparados a ativos financeiros (como é o caso do Anexo I); e (iii) maior flexibilização no controle, tendo em vista que não há obrigação de negociação dos crédito de carbono do agronegócio em mercado regulado de emissões.
Sobre a inexistência de um mercado regulado de carbono no Brasil, conforme alertado pelo nosso escritório no âmbito da EAP, A CVM se assegurou de implementar dois mecanismos de segurança: (i) o gestor fica obrigado a verificar a existência, integridade e titularidade dos ativos quando das diligências para sua aquisição (art. 29, IV); e (ii) o regulamento deve definir como o administrador exercerá controle sobre a titularidade dos créditos ao longo do funcionamento da classe de cotas, seja contratando um prestador de serviço ou exercendo o controle diretamente (art. 15, § 5º).
Essa decisão foi tomada especialmente em razão da expectativa de que o agronegócio não seja obrigado a reduzir suas emissões, nos termos dos projetos de lei em andamento.
Naturalmente, a CVM alerta que “uma grande liberdade requererá dos gestores dos fundos uma responsabilidade condizente na escolha de créditos de carbono do agronegócio”. Assim, o regulamento do FIAGRO que permita a aquisição de créditos de carbono do agronegócio deverá:
I – especificar como o administrador exercerá controle sobre a titularidade dos créditos, seja contratando um prestador de serviço para o fundo ou exercendo o controle diretamente; e
II – prever as metodologias que podem ser aceitas pelo gestor para fins de certificação da efetiva redução ou remoção de gases do efeito-estufa nos projetos de originação desses créditos, realizada por terceiro independente.
Dinâmica de Assembleias dos FIAGRO
A RCVM 214 trouxe regras que espelham as dinâmicas de FII, com inconsistências e omissões apontadas pelo nosso escritório no âmbito do EAP devidamente sanadas.
Regime Contábil dos FIAGRO
A CVM manteve a obrigação das demonstrações contábeis do FIAGRO serem preparadas de acordo com o previsto nas normas contábeis emitidas por esta comissão aplicáveis às companhias abertas.
Não obstante a CVM ter resistido ao nosso fundamento manifestado no EAP, ponderamos que seguimos divergindo acerca do proveito de tais normas contábeis, por entender que tanto os FIAGRO deveriam ter regulamentação contábil específica que se preocupasse com todas as suas particularidades, quanto porque antevemos uma inadequação do uso das mencionadas normas, já que são legalmente exigidas, dos diversos ativos investidos pelos FIAGRO, metodologias de contabilização que podem ser bastante distintas das aplicáveis aos ativos e investimentos das companhias abertas (ativos que demandem precificação a valor justo, por exemplo, e não pelo método da equivalência patrimonial). É o caso, por exemplo, de um FIAGRO que tenha preponderância em ativos aderentes à carteira de FIP, que deveriam ser avaliados a valor justo.
Vigência e Adaptação da RCVM 214
A Resolução CVM 214 entra em vigor em 03 de março de 2025, não obstante os anseios do mercado com relação ao lançamento de novos FIAGRO utilizando-se da flexibilidade da nova norma. Por outro lado, tal prazo poderá ser importante para uma adequada avaliação da redação final da norma e esclarecimento de eventuais dúvidas pelos participantes do mercado antes da efetiva constituição de produtos com base no novo normativo.
A adaptação do estoque dos FIAGRO poderá ocorrer até 30 de setembro de 2025, prazo que entendemos razoável e consistente com esta relevante fase de adaptação da indústria de fundos à RCVM 175.
Os pontos acima indicados são aqueles que destacamos em uma primeira análise, mas certamente, outros pontos de atenção e desenvolvimento surgirão ao longo das discussões no âmbito da aplicação da nova norma.
Importante enfatizar o trabalho competente e minucioso realizado pela CVM na construção da nova regulamentação de FIAGRO, permitindo a participação e ponderando os diversos comentários e sugestões da indústria para este produto que tem a promessa de rápido desenvolvimento e sucesso, inclusive para o varejo, assim como o FII.
Nossa equipe seguirá acompanhando a evolução das discussões a respeito do tema e encontra-se completamente à disposição para dirimir quaisquer dúvidas.
Este informativo foi elaborado exclusivamente para nossos clientes e apresenta informações resumidas, não representando uma opinião legal. Dúvidas e esclarecimentos específicos sobre tais informações deverão ser dirigidos diretamente ao nosso escritório.
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