DILIGÊNCIAS RECOMENDADAS AOS GESTORES DE RECURSOS EM TEMPOS DE COVID-19: SITUAÇÕES DE INADIMPLÊNCIA

Um dos efeitos mais notáveis constatados em ocasiões de crise são situações de inadimplência. Com a pandemia de Covid-19 e todo seu efeito disruptivo, a inadimplência (potencial ou efetiva) tornou-se um desafio presente na rotina dos gestores de recursos (“Gestores”) que precisam, mais do que nunca, agir de forma diligente para preservação dos melhores interesses dos veículos sob sua gestão, tais como fundos de investimento e carteiras administradas (“Veículos”) e respectivos cotistas e clientes.

Muito embora a presente situação exija decisões rápidas e eficazes por parte dos Gestores e dos demais participantes da indústria de fundos de investimento, uma vez decorrido o período de isolamento social ocasionado pela referida pandemia e reestabelecido o status quo, os Gestores poderão ser avaliados pelo modo como lidaram com tais desafios sendo, desta vez, sob a ótica da normalidade.

Com base em nossa experiência, verificamos que muitas das decisões tomadas durante períodos de crises são objeto de questionamentos, sendo estes formulados com o tempo necessário para a reflexão de seus efeitos e com a vantagem de se saber o alcance efetivo de suas consequências.

Desse modo, o presente informativo tem o objetivo de tratar de algumas medidas de diligência em situações de inadimplência que podem ser adotadas por Gestores para que, em nosso entendimento, suas ações não se afastem dos princípios de fidúcia e lealdade estabelecidos pela regulamentação e autorregulamentação aplicáveis e pelas melhores práticas de mercado.

A. Inadimplência dos ativos da carteira dos Veículos: verificações necessárias

Documentos dos ativos

No âmbito dos Veículos sob gestão e do tratamento que deve ser concedido para os ativos por eles detidos que se encontrem em situação de default (efetivo ou iminente), acreditamos que o primeiro passo no processo de tomada de decisão dos Gestores deve ser voltado para a leitura e compreensão dos termos e condições estabelecidos nos instrumentos contratuais que formalizaram a aquisição de tais ativos, tais como os contratos de crédito, escrituras de debêntures ou termos de securitização de cédulas de créditos imobiliários (“CRI”), por exemplo. Tal verificação tem a finalidade de aferir os direitos efetivamente detidos pelos Veículos e as opções que tais instrumentos apresentam em relação ao devedor, incluindo as covenants e as possibilidades de sua execução ou repactuação, conforme o caso.

Ressaltamos que tal verificação de disposições contratuais e exploração de alternativas é sempre enriquecida quando realizada conjuntamente com as disposições específicas do regulamento ou contrato de gestão de carteira administrada (conforme aplicável) de cada Veículo, bem como com as exigências da regulamentação e autorregulamentação que lhe são aplicáveis.

Especialmente com relação aos fundos de investimento imobiliários (“FII”), gostaríamos também de chamar a atenção dos Gestores para a verificação dos contratos de locação (quando aplicável em decorrência da política de investimento do FII), principalmente no que se refere às cláusulas de renegociação dos valores de aluguel, das condições para concessão de descontos temporários e dos prazos previstos em lei específica para execução de garantia[1] (quando aplicável).

Ainda, ressaltamos que um aspecto relevante no âmbito dos FII é o fato de que tais veículos devem realizar distribuições semestrais de, no mínimo, 95% (noventa e cinco por cento) dos lucros auferidos neste período, em linha com a obrigação prevista no artigo 10º, parágrafo único da Lei 8.668, de 25.06.1993, conforme alterada. Deste modo, na hipótese em que se verifique a necessidade de retenção de uma parcela de tais distribuições em montante superior a 5% (cinco por cento) dos lucros auferidos no semestre, é necessária a avaliação acerca dos requisitos legais e regulatórios que devem ser observados para realização de tal retenção.

Nesse sentido, outro aspecto relevante para os FII é a eventual constituição de reservas para fazer frente a eventuais contingências que possam surgir nos meses que estão por vir em decorrência da atual conjuntura econômica. As retenções destinadas a este fim – principalmente pelos que ainda não se utilizam de tal mecanismo – devem ser precedidas de uma avaliação das condições e requisitos que devem ser observados para tanto do ponto de vista regulatório, notadamente dos entendimentos já manifestados pelas Superintendências de Relações com Investidores (SIN) e de Normas Contábeis e Auditoria (SNC) da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), uma vez que tal retenção pode vir a impactar diretamente o cumprimento da obrigação de distribuição dos lucros auferidos pelo FII no semestre em questão, conforme pontuada acima.

Governança aplicável ao processo de tomada de decisão

Em linha com os nossos entendimentos acima, as exigências legais de diligência pelos Gestores em relação às carteiras dos Veículos se tornam ainda mais relevantes em momentos de crise e, consequentemente, ao processo de tomada de decisão quanto ao exercício de eventuais direitos dos Veículos em relação a uma situação de default de seus ativos.

Para tanto, além das verificações mencionadas acima, entendemos que os Gestores devem, também, verificar qual será a governança aplicável ao respectivo Veículo para a tomada de decisão quanto às medidas a serem adotadas em relação ao ativo inadimplido.

Isso, porque, os Veículos que se constituam como fundos de investimento, por exemplo, podem vir a estabelecer em seus regulamentos a necessidade de deliberação em Assembleia Geral de Cotistas quanto a uma situação de inadimplência dos ativos integrantes da carteira do respectivo fundo ou, ainda, estabelecer a competência em relação àquela decisão a um comitê de investimentos ou outro órgão de governança do próprio fundo – hipóteses em que a discricionariedade do Gestor em relação a tal decisão é reduzida ou afastada, em que pese a sua responsabilidade pela gestão das carteiras dos Veículos.

Ademais e, independentemente da verificação mencionada no parágrafo anterior, recomendamos que os Gestores também revisitem as suas próprias políticas internas, especialmente a política de gestão de riscos, visando compreender o próprio ambiente de governança em que se encontram e em que medida o tratamento de inadimplências dos ativos dos Veículos demanda uma deliberação pelos, ou realização de reportes aos, comitês e/ou departamentos internos do Gestor.

Importante ressaltar, ainda, que a não observância pelo Gestor da governança aplicável ao caso concreto (e.g., a repactuação de termos e condições do ativo junto ao devedor a que se refere a inadimplência de forma isolada e discricionária pelo Gestor, sem a prévia deliberação pelo comitê de investimentos do respectivo fundo de investimento que possui competência para aquela decisão) pode ser caracterizada como ato de liberalidade do próprio Gestor, ora conduta vedada pela legislação em vigor[2], tendo em vista que tal ato pode vir a detrimento dos interesses do próprio Veículo e respectivos investidores.

Apesar de ser possível a tomada de decisão de forma discricionária pelo Gestor nas situações ilustradas acima em relação aos Veículos que não disponham de mecanismos de governança próprios para decisão de tais matérias, entendemos que (i) a realização de assembleia geral de cotistas ou de reunião de comitês técnicos dos Veículos que sejam constituídos como fundos de investimento, ou (ii) a própria consulta aos clientes cujas carteiras de valores mobiliários estejam sob gestão do Gestor, para decisão quanto ao tratamento aplicável às situações de inadimplência é uma oportunidade para ampla discussão do tema, demonstrando, em nossa leitura, a diligência e a lealdade exigidas do Gestor com relação ao monitoramento dos ativos e desenvolvimento de suas atividades.

Nesse sentido e, em linha com as recomendações da CVM aplicáveis à análise e monitoramento de ativos de crédito privado[3], ressaltamos que as decisões a respeito do tratamento para inadimplência em ocasiões de crise também devem ser documentadas de modo consistente e passível de verificação como, por exemplo, por meio de atas das reuniões dos comitês internos dos Gestores ou dos órgãos de governança dos próprios Veículos.

Além da deliberação final, tais atas devem ser redigidas visando documentar o racional adotado para a decisão tomada, endereçando, inclusive, eventuais preocupações que foram avaliadas por ocasião da efetiva tomada de decisão e o registro documental dos fatores que a fundamentaram, como, por exemplo, as informações e os materiais apresentados ao respectivo comitê, os quais poderão demonstrar que as decisões foram tomadas de modo informado, refletido e com base na regulamentação e autorregulamentação aplicáveis.

Ainda, também é importante reiterar as orientações da CVM acerca do permanente monitoramento da qualidade de crédito dos ativos, dos principais devedores ou emissores, sendo certo que eventuais reavaliações também devem ser documentadas e apreciadas pelas autoridades decisórias competentes, conforme identificadas nas políticas adotadas pelo Gestor, bem como do monitoramento periódico da aplicabilidade das cláusulas de covenants e reavaliação da qualidade das garantias, para que seja tempestivamente possível a adoção das medidas contratualmente permitidas em caso de potencial default.

Com efeito, decisões que envolvem potencial risco de perdas para os Veículos e que são tomadas em momentos de incerteza exigem cuidados adicionais por parte dos Gestores, destacando-se, nesse sentido, a busca pela opinião de consultores legais ou especializados que poderão fornecer uma visão independente acerca do processo de tomada de decisão.

Por fim, é sempre importante ressaltar a importância da presença do Gestor nas assembleias dos ativos detidos pelos Veículos sob gestão, especialmente daqueles que se encontrem em situações de inadimplência ilustradas acima. Isso, porque, o exercício do direito de voto pode demonstrar, em nosso entendimento, a atuação diligente do Gestor em relação aos interesses dos Veículos e respectivos investidores, além de ser obrigatório em assembleias que deliberem acerca de alterações de prazo ou condições de prazo de pagamento, garantias, vencimento antecipado, resgate antecipado, recompra e/ou remuneração originalmente acordadas para as operações, conforme indicado no artigo 5º, inciso III das Regras e Procedimentos para o Exercício de Direito de Voto em Assembleias nº 02, de 23.05.2019, da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (“ANBIMA”).

Medidas regulatórias aplicáveis

Sem prejuízo das recomendações anteriores no âmbito do processo de tomada de decisão, é recomendável que o Gestor compartilhe, assim que possível, com os administradores fiduciários, custodiantes e demais prestadores de serviço dos Veículos sob gestão – tais como as agências classificadoras de risco (quando aplicável) –, todas as informações e análises que possam vir a desencadear a realização de provisões para despesas e/ou prejuízos, bem como fatos e eventos, de que tome conhecimento, que possam impactar o apreçamento de ativos da carteira[4].

Em linha com o disposto acima, é importante ressaltar que o dever de transparência do Gestor pode ser compreendido como o fornecimento máximo de informações necessárias para que as partes envolvidas, incluindo os investidores dos Veículos, tenham acesso às mesmas informações, ao mesmo tempo, podendo ter o mesmo poder de reação a tais informações, seja por meio de fatos ou comunicados relevantes ou, ainda, por meio da realização de assembleia geral, em linha com as disposições da regulamentação aplicável.

B. Medidas aplicáveis aos casos de inadimplência de obrigações pelos cotistas de fundos fechados

Tal como aplicável aos ativos que compõem a carteira dos Veículos sob gestão, o tratamento de inadimplências de cotistas em chamadas de capital de fundos de investimentos constituídos como condomínios fechados (fundos fechados) deve ser iniciado a partir da aferição das disposições que tratam desse tema no âmbito dos compromissos de investimento e demais documentos firmados pelos cotistas, bem como do regulamento do respectivo fundo e das normas regulatórias e autorregulatórias aplicáveis, de modo a:

• permitir que sejam tomadas as providências para execução das medidas de notificação para tais cotistas, conforme previstas nos documentos acima mencionados; e
• verificar as multas e demais penalidades que deverão ser impostas (tais como supressão dos direitos políticos ou diluição da participação de tal cotista inadimplente, conforme o caso)

Por fim, em circunstâncias de inadimplência de cotistas em relação ao fundo de investimento, é recomendável que qualquer flexibilização quanto a aplicação das penalidades previstas nos regulamentos e compromisso de investimento firmados, incluindo o desconto de multas e/ou parcelamento do valor principal, seja submetida à deliberação dos demais cotistas reunidos em assembleia geral, considerando que tais decisões podem ser caracterizadas como atos de liberalidade do próprio Gestor, ora conduta vedada pela legislação em vigor conforme mencionada anteriormente neste informativo, uma vez que a opção deliberada pelo não-exercício de um direito pode vir a detrimento dos interesses do próprio fundo de investimento e demais cotistas.

Nossa equipe se encontra à disposição para quaisquer esclarecimentos, informações adicionais ou suporte relativamente aos assuntos tratados neste documento.

Este Informativo foi elaborado exclusivamente para nossos clientes e apresenta informações resumidas, não representando uma opinião legal. Dúvidas e esclarecimentos sobre tais informações deverão ser dirigidos diretamente ao nosso escritório.

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Abril/2020

[1]Lei Ordinária n.º 8.245, de 18.10.1991, conforme alterada.

[2] Vide art. 89 da Instrução CVM nº 555, de 17 de dezembro de 2014, conforme alterada: “Art. 89. É vedado ao administrador e ao gestor, no que aplicável, praticar os seguintes atos em nome do fundo: (…) VIII – praticar qualquer ato de liberalidade.”

[3] Vide Ofício-Circular/CVM/SIN/ Nº 6/2014

[4] Vide item 45 do Ofício-Circular/CVM/SIN/ Nº 6/2014.

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